Quando o país vislumbra a volta à normalidade, com o avanço da vacinação, algumas decisões precisam ser tomadas para o novo momento que se anuncia. O fim de um transporte público caro e ineficiente é um debate cuja urgência a pandemia só reforçou. Agora é hora de se adequar ao novo modelo de serviço que a sociedade quer para atender às reais necessidades de deslocamentos nas cidades. Mas, antes, é preciso saber onde estamos e onde precisamos chegar.
Neste momento o transporte público, em especial o coletivo urbano, que é um transporte de massa, responsável por atender a maior parte da população – especialmente a parcela menos favorecida economicamente -, segue ainda menos eficiente do que antes da pandemia e requer medidas urgentes para reabilitação e renovação.
Sem as devidas mudanças necessárias para a prestação de um serviço condizente com o anseio popular, o coletivo urbano registra atualmente perda de 40% na demanda de passageiros, apesar de manter a oferta entre 80% e 100% da frota, em comparação com os números de 2019, para atender às normas sanitárias necessárias. E amarga prejuízos que já passam dos R$ 16 bilhões.
O transporte público atual certamente não é o serviço que a sociedade deseja. Nem os operadores do serviço querem isso. Tanto é assim que já existe uma proposta multimodal, de consenso entre várias entidades ligadas à área, para reestruturação desse serviço, com a criação de um novo marco legal para modernizar as regras existentes e atender às premissas mundiais que caracterizam um transporte público de boa qualidade e preço acessível.
Entre os pontos cruciais dessa proposta, que já é do conhecimento do Governo Federal – Ministérios da Economia e Desenvolvimento Regional –, destaca-se a urgente mudança do modelo de financiamento desse serviço. A maioria dos contratos de concessão em vigor no país adota o formato de custeio baseado na tarifa pública, aquela que é cobrada dos passageiros, que por sua vez é definida pelo poder público e é normalmente calculada por meio de um índice que divide o custo total pelo número de passageiros pagantes. Isso só funciona quando há quantidade de passageiros suficientes para permitir o rateio dos custos e a manutenção do preço das passagens em um patamar aceitável, cenário irreal hoje.
De acordo com a proposta de reestruturação defendida por várias entidades ligadas ao transporte público, incluindo entidades da sociedade civil e outros organismos sem vínculo com o setor, a Lei de Mobilidade Urbana, de 2012 (12.587/12), já dava o primeiro passo no sentido de equacionar o item financiamento, com a criação de uma tarifa técnica, suficiente para cobrir os custos da operação e remunerar a empresa operadora pelo serviço prestado, conforme o padrão de qualidade contratado pelo poder concedente (número de veículos, frequência das viagens, número de passageiros por viagem, etc), a despeito do número de passageiros transportados. Lembrando que a tarifa pública é fixada pelo poder público e é cobrada do passageiro pagante, enquanto a de remuneração é devida ao operador e tem que cobrir os custos totais pelo serviço prestado.
A proposta de solução para esse grande nó do transporte coletivo, que é o financiamento do serviço, prevê ainda várias possibilidades de fontes alternativas de recursos para cobrir a diferença entre a tarifa pública e a de remuneração. O tema vem sendo tratado pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) desde 2013, mas sem adesão dos governos, ao contrário de América do Norte e Europa. Lá fora, o subsídio ao passageiro do transporte público é inquestionável e responde por algo entre 40% e 50% dos custos, com reflexos diretos sobre a tarifa paga.
Há um consenso entre os especialistas de que as alternativas de financiamento do transporte público devem considerar sempre o passageiro. Defendem, por exemplo, que os recursos com a propaganda nos ônibus ou a receita dos estacionamentos públicos sejam direcionados ao custeio dos sistemas públicos de transportes. A reestruturação do serviço pode incluir várias opções para o financiamento extratarifário, entre elas o custeio das gratuidades por meio dos orçamentos públicos.
Além disso, há sugestões para a flexibilização dos contratos de concessão do setor de transporte público, que pode ter impacto direto na redução de custos e tarifas. Os rígidos contratos atuais impedem os operadores de propor alterações de rota, mudanças nas escalas de trabalho, adequação da oferta à demanda e, menos ainda, de adotar novas tecnologias e novos modelos de negócio, como, por exemplo, serviços de transporte coletivo sob demanda.
A disposição para o amplo diálogo sobre a reestruturação do transporte público coletivo é nítida por parte de operadores e concessionários do serviço. Eles já entenderam, há muito tempo, que o atual modelo de financiamento caducou, não atende à sociedade e emperra o desenvolvimento de um transporte de qualidade a preços acessíveis. Resta saber se os Poderes Executivos Federal, estaduais e municipais e o Congresso Nacional estão sensíveis e dispostos a oferecer à sociedade como um todo esse benefício, do qual os brasileiros são merecedores.
Por Otávio Cunha – presidente executivo da NTU – Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos
Fonte: NTU