Evitar o transporte coletivo é recomendação um tanto comum em listas de medidas para reduzir as chances de contaminação pela Covid-19. Mas muita gente nas cidades brasileiras precisa se deslocar e não dispõe de outros meios. Como proporcionar o máximo de segurança para passageiros e tripulação? Após mais de seis meses de pandemia, estudos e experiências de sucesso permitem abordar a questão com mais embasamento, e países, cidades e academia indicam abordagens de prevenção que têm se mostrado efetivas.
Pesquisas do Programa QualiÔnibus conduzidas em municípios brasileiros apontam que cerca de metade das pessoas que usam o ônibus não têm outro modo de transporte para se deslocar. Em tempos de pandemia, fica mais evidente a importância dos modos coletivos. Trata-se de serviço essencial que atende profissionais de outros serviços essenciais, além de ser indispensável para as pessoas de menor renda: um estudo chileno identificou que a redução no uso de transporte coletivo durante a pandemia foi de cerca de 40% para pessoas de renda mais baixa, enquanto para rendas mais altas chegou a quase 80%.
A população precisa dos serviços de ônibus e metrô, mas 93% dos brasileiros dizem temer contrair o vírus nesses espaços. Que medidas adotar, com base na ciência e em experiências bem-sucedidas, para que as pessoas viajem (e se sintam) seguras no transporte coletivo?
Estimando riscos para planejar medidas
Diversos estudos e pesquisas buscam esclarecer se o transporte coletivo é ou não propagador da Covid-19. Não é uma pergunta simples de responder: há diversos fatores envolvidos, muitos deles correlacionados, o que dificulta apontar a incidência dos fatores na transmissão. Grande parte dos estudos busca uma correlação entre a população infectada e os respectivos perfis e comportamentos. Há um lema na academia que diz que correlação não implica em causalidade. A prevalência de alguma característica entre os infectados muitas vezes não é suficiente para concluir sobre a causa ou o local do contágio.
Um exemplo: relacionar de forma direta a quantidade de infectados em uma cidade à demanda transportada pode mascarar a incidência de possíveis fatores causais, como o grau de abertura das atividades econômicas e a aderência da sociedade local às medidas de prevenção. A população cativa do transporte coletivo tende a passar mais tempo embarcada devido a deslocamentos mais longos entre casa e trabalho, e é exposta a mais poluição do ar, associada a um aumento no índice de mortalidade pela Covid-19. Além disso, pessoas de menor renda têm menor possibilidade de fazer home office, vivem em residências menores e mais densamente ocupadas, entre outros tantos fatores que podem aumentar a exposição ao vírus.
Para definir as chances de contágio é preciso considerar dois fatores determinantes. O primeiro é a probabilidade de que haja um passageiro infectado dentro de um veículo. Quando não há infectados, não há chance de contágio e qualquer distância é segura. Em Medellín, cidade de 2,5 milhões de habitantes, um estudo tomou por base o número de mortes e infectados por Covid-19 e um percentual de assintomáticos e estimou que a probabilidade de haver um passageiro infectado no metrô é de um a cada 1.080 passageiros. Isso significa menos de um infectado por vagão no metrô lotado. Por isso é importante considerar os números de infectados na cidade e de trabalhadores do transporte coletivo.
Então chegamos ao segundo fator: quando há algum passageiro ou funcionário infectado, qual a probabilidade de transmissão? Estudos sugerem que o risco varia de acordo com algumas condições, como duração da viagem, ocupação dos veículos, renovação do ar e respeito a orientações de prevenção. A seguir, elencamos alguns desses fatores de risco e medidas que vêm sendo adotadas para mitigá-los.
Melhorar a circulação de ar
Em julho deste ano, a OMS reconheceu a possibilidade de transmissão por Covid-19 por meio de aerossóis (micropartículas capazes de se deslocar no ar), o que significaria que apenas o distanciamento pode não ser suficiente. A conclusão deu mais importância à qualidade da renovação do ar em espaços fechados, como o de ônibus, para o controle de transmissão. A recomendação é priorizar a ventilação natural, mantendo as janelas sempre abertas, mesmo em dias chuvosos ou de baixas temperaturas. Sistemas de recirculação de ar no interior do veículo não devem ser utilizados.
A forma como o ar circula no interior dos veículos também é importante. O metrô de Medellín, por exemplo, possui um sistema de circulação de ar na direção vertical, em que o ar é injetado na parte superior do vagão e extraído na parte inferior. Esse mecanismo apresenta maior segurança, uma vez que as gotículas expelidas pelos passageiros rapidamente se depositam no piso dos vagões, o que evita a transmissão aérea. O sistema proporciona uma renovação rápida do ar, de 50% em 43 segundos, 80% em 2 minutos e 100% em 3 minutos e 30 segundos.
Na capital colombiana, Bogotá, os ônibus convencionais têm tempo de renovação de 10 a 15 minutos, e os micro-ônibus, de até 20 minutos. Os micro-ônibus da cidade não têm sistema de ventilação forçada, e a quantidade de ar que entra no veículo é determinada pela sua velocidade. Além disso, por ser um sistema de ventilação na direção horizontal, a circulação de ar é turbulenta e dissipa as partículas pelo interior do veículo.
No Brasil, a norma técnica NBR 15570 exige taxa de renovação do ar de pelo menos 20 vezes o volume interno útil do ônibus por hora, desconsiderando poltronas e demais componentes internos – ou seja, o ar deve ser renovado a cada 3 minutos. No entanto, são poucos os estudos que apontam qual é a taxa nos ônibus em operação nas cidades brasileiras. A realização de pesquisas do tipo permitiria identificar problemas e a implementar as modificações necessárias nos veículos para melhorar as condições de segurança.
A eficácia do uso de máscaras
Máscaras se consolidaram como uma das principais recomendações para proteção – recomendadas por governos e OMS para quem precisa utilizar o transporte coletivo. Um dos primeiros estudos a indicar sua eficácia foi realizado a partir do mapeamento da trajetória de transmissão de um passageiro infectado em Chongqing, China. O passageiro realizou uma viagem de ônibus em que ele e a maior parte dos passageiros não estavam utilizando máscaras. No trajeto de 2 horas e 10 minutos, cinco dos 39 passageiros também foram contaminados. Ao final da viagem, o indivíduo comprou uma máscara e embarcou em um micro-ônibus. Na nova viagem, de 50 minutos de duração, nenhum dos outros 14 passageiros foi contaminado.
Um estudo da Universidade Federal de Minas Gerais apontou a eficácia de máscaras em reduzir a carga viral à qual as pessoas estão expostas, principalmente em situações em que todos os envolvidos fazem uso adequado. A exposição a menor carga viral reduz as chances de contrair a Covid-19 e, caso ocorra a contaminação, pode levar a quadros mais leves da doença.
O impacto da fala na transmissão
Em vários países, o mapeamento de clusters – grupos com três ou mais pessoas infectadas por Covid-19 que tiveram contato em algum momento – tem demonstrado uma baixa correlação entre o aparecimento de casos e o transporte coletivo. São experiências que indicam que utilizar máscara e evitar conversar no transporte coletivo podem ser medidas poderosas contra o contágio.
Há evidências de que a concentração de aerossol liberada pela combinação de fala e respiração por mais de 4 minutos equivale a 30 segundos de canto ou tosse. Isso ajuda a explicar por que países como Japão não verificaram no transporte coletivo um vetor de contágio. O país asiático não adotou a abordagem de isolamento social como principal medida de controle de transmissão, mas realizou campanhas de saúde pública e comunicação que enfatizaram a importância de se evitar os “três Cs”: espaços fechados, lugares lotados e situações de contato próximo, como conversas (closed spaces, crowded places e close-contact settings). A população foi orientada a não conversar ou atender telefonemas no transporte coletivo, reduzindo de três para dois os “Cs” do ambiente.
Os japoneses, que já tinham o hábito de usar máscaras devido à poluição, apresentaram bom comprometimento com as orientações de etiqueta, o que pode ter contribuído para o bom resultado. Esse comportamento foi o mesmo observado na França que, entre os dias 9 de maio e 3 de junho, contabilizou 150 clusters e nenhum vinculado ao transporte coletivo. Estudos na Áustria e em Nova York chegaram a conclusões semelhantes.
Quando passageiros do transporte coletivo viajam em relativo silêncio e utilizando máscaras, liberam menos aerossóis no ambiente e contribuem para a segurança de todos. Conscientizar a população para evitar conversar e atender telefonemas durante as viagens é um desafio no Brasil. As experiências dos demais países apontam caminhos, como campanhas de comunicação e fiscalização do cumprimento das medidas preventivas.
Desinfecção dos veículos
A higienização minuciosa de ônibus e metrôs é importante para desinfectar veículos entre viagens, mas é um processo demorado e custoso para cidades e operadores. Felizmente, novos métodos têm surgido como alternativa. Um deles é o uso de raios UV-C, tecnologia consolidada em ambientes hospitalares e no tratamento de águas. Uma empresa de ônibus de Xangai montou uma zona de desinfecção por UV-C em um túnel de lavagem convencional. A inovação reduz a duração do processo de 40 para 5 minutos e garante a desinfecção de cantos de difícil acesso. A tecnologia também foi aplicada no metrô de Nova York e está disponível no Brasil para transporte rodoviário e urbano. Sistemas como o metrô de São Paulo e os ônibus urbanos de Contagem (MG) realizam testes com a radiação. A desinfecção deve ser realizada por pessoa especializada e em ambiente controlado, já que a exposição cumulativa de raios ultravioleta pode ser cancerígena.
Medidas de prevenção que ficam como legado
Em algumas cidades brasileiras, a diminuição da demanda de passageiros e da circulação de pessoas nas ruas está sendo vista como uma oportunidade para se apostar em melhorias de qualidade para o transporte coletivo que também têm potencial de aumentar a segurança. O escalonamento de horários por atividade comercial, além de reduzir congestionamentos em hora-pico, é uma ferramenta útil no período pandêmico para evitar aglomerações no transporte coletivo.
A implantação de faixas dedicadas para ônibus reduz o tempo de viagem e, por consequência, o tempo de exposição dos passageiros. Formas alternativas de pagamento das passagens, eliminando o pagamento em dinheiro, são passo importante para que cidades avancem na integração tarifária – e evitam o manuseio de cédulas e moedas e o contato desnecessário entre passageiro e cobrador.
Combinar medidas para mais segurança
O transporte coletivo é um serviço essencial à população e, para muitos cidadãos brasileiros, é o único meio de transporte possível. Experiências e estudos como os mencionados indicam que ônibus e metrô não são vilões do contágio pela Covid-19. Como outros espaços coletivos, porém, requerem cuidados. Oferecer um serviço seguro passa por adotar uma combinação de medidas: ventilação adequada para atender à norma de renovação de ar; fiscalização para que haja respeito ao uso de máscaras e às orientações de higiene e cuidados como evitar conversas e telefonemas; viagens mais rápidas, por meio de faixas dedicadas; escalonamento de horários para diluir a demanda; monitoramento do contágio na população e entre os funcionários do transporte coletivo.
O contexto financeiro dificulta a implantação de algumas medidas, e foi agravado pela pandemia, que acentuou a já histórica queda na demanda por ônibus e metrô. O momento é de diálogo e cooperação para superar os desafios. O transporte coletivo é essencial para o funcionamento, a prosperidade e a sustentabilidade das cidades. Passageiros ou não, todos dependemos dele. A hora de construir um presente – e um futuro – seguro e sustentável é agora.
Por Mariana Müller Barcelos e Cynthia Blank
Fonte: WRI Brasil