O que move uma cidade são as pessoas, que se movem nas cidades. Quanto mais as pessoas se movem, mais a cidade se humaniza. Essa verdade quase pueril acaba esquecida na azáfama diária. No corre-corre dos compromissos rotineiros o individual acaba ocupando um espaço (físico e mental) que, por natureza, deveria ser pensado como uma conquista coletiva: as pessoas estão nas cidades para ficarem juntas, estreitar oportunidades, permitir trocas, gerar riquezas, permitir a convivência e a civilidade. O ser humano é gregário por natureza.
Homens, mulheres, crianças, todos carregam a cidade dentro de si. Uma cidade violenta, desumana, excludente, produz pessoas estressadas, individualistas. Mesmo sem o saber, as pessoas reproduzem a cidade que carregam, gerando um círculo vicioso que demora muito para ser rompido…
Se quisermos mudar as pessoas é preciso mudar a forma como elas convivem nas cidades; como compartem os espaços; como vivenciam de forma comum seus sonhos e suas expectativas. Pessoas melhores farão cidades melhores. Mas para isso é preciso romper esse padrão que se retroalimenta há décadas, reproduzindo uma cidade que atende aos interesses de poucos, em detrimento das necessidades de muitos. Que premia e incentiva o individualismo em detrimento do coletivo.
Ouvimos há décadas que para melhorar o trânsito é preciso “educar” as pessoas. O termo educação, complexo em sua essência, é utilizado quase como um mantra por gente que acredita que campanhas publicitárias e ações mercadológicas terão o condão mágico de mudar comportamentos e corrigir desvios graves de civilidade… no trânsito.
O comportamento nas ruas e avenidas, a bordo de máquinas possantes e poluentes, é um exemplo emblemático de como as pessoas reproduzem o modelo de cidade em que vivem. O trânsito como o conhecemos define de saída que o individual deve prevalecer sobre o coletivo quando exige regras para que algumas pessoas tenham direito ao uso de mais espaço público que outras. É quando o pedestre – curiosamente outro nome dado à pessoa, ao ser humano – é visto como uma interferência no fluxo de veículos (seres inumanos). Essa inversão de valores pressupõe uma construção de cidade que já nasce contaminada, predisposta a destruir espaços comuns em benefício de um uso seletivo, com mais direitos aos que possuem automóveis, e menos direitos aos que se utilizam (por livre opção ou necessidade) de modos ativos e coletivos de locomoção.
Por que quando se fala em trânsito pouco ou quase nada se diz sobre transporte coletivo? Sobre prioridade nas vias aos ônibus? Por que trânsito parece ser sempre aquela disciplina cuja missão principal é garantir a fluidez do transporte individual? Que trata da mesma forma um ônibus e um carro, que conta veículos e não pessoas?
Nessa lógica torta, “educar” para “esse” trânsito significa amestrar pessoas, e não alterar comportamentos em benefício do coletivo social. É uma ótica que parte de uma verdade assumida e aceita respeitosamente como imutável: a sociedade do automóvel deve ser mantida.
Uma cidade que é moldada em função do uso intensivo do transporte individual motorizado produz, como consequência, uma série de efeitos colaterais. Dentre muitos, os mais visíveis são aqueles que vemos contabilizados nas graves estatísticas de mortos e feridos. Esta é a face visível ao que se convencionou chamar de “trânsito”. Mas o trânsito é um reflexo do modelo de cidade que adotamos, onde cabe perguntar: é esta a cidade que queremos?
A forma de se abordar o tema da segurança viária depende assim de como situamos a questão do trânsito nas cidades: ele deve ser visto como decorrência natural num modelo urbano aceito como o único possível, ou delimitado e dependente dentro de um modelo de cidade voltado para as pessoas? Ou sendo mais direto: o trânsito, ao invés de impor regras à cidade não deveria seguir as regras que a cidade deveria lhe impor? E assim permitir melhor qualidade de vida, maior democratização e qualidade no uso dos espaços públicos, menos emissão de poluentes, uma verdadeira vida em sociedade? Menos letalidade e menos custos para o sistema de saúde, ou em resumo, mais segurança nas ruas?
Por que acreditar que campanhas de “educação” farão o milagre de reduzir acidentes, quando o incentivo ao transporte coletivo, mais do que justiça social, pode resultar de fato em menos mortes e poluição nas cidades?
Desde que o uso do automóvel foi nos vendido como um imperativo necessário ao desenvolvimento e crescimento das cidades, o que temos visto desde então tem sido uma rápida degradação de vários indicadores de qualificação da vida urbana. Há alguns anos, ao provar do próprio veneno, muitas cidades perceberam que o automóvel se tornou, ao invés de solução, um fator determinante de destruição dos tecidos urbanos.
Ailton Brasiliense, presidente da ANTP, lembra sempre que o transporte coletivo deve ser visto como um qualificador das cidades. Em outras palavras, o melhor antídoto aos malefícios causados ao meio urbano pelo abuso no uso do automóvel é a sua substituição por modos mais sustentáveis de locomoção, onde se somam, ao lado dos modos tradicionais de transporte coletivo, os modos ativos e sustentáveis, como o andar a pé e o uso da bicicleta dentro de um sentido de rede de transporte que preserva a essência maior de qualquer adensamento urbano: a vida em comum.
As regras de trânsito, ao invés de se pautarem pela prevalência do reinado do automóvel, devem se submeter aos novos tempos de humanização das cidades, onde o pedestre deixou de ser a “vítima” para se tornar um cidadão com plenos direitos. E logo de saída, ao invés da saída enganosa do discurso da educação, está mais que atrasada a hora de se passar a utilizar para o tráfego que temos algumas palavras-conceito que tanto assustam a políticos e carrocratas, mas que se mostraram vitoriosas em países que de fato reduziram mortes e acidentes, como punição, fiscalização, contenção, proibição…
A tecnologia, com todas suas promessas e magias, precisa estar não à frente, mas a reboque desse novo enfoque.
Fonte: ANTP – por Alexandre Pelegi, editor da Revista dos Transportes Públicos