Em artigo publicado no Valor, o economista-chefe do Cade apresenta estudo sobre os impactos concorrenciais da entrada do Uber sobre o mercado incumbente de aplicativos, sugerindo a desregulamentação do mercado de taxis. Comete equívoco conceitual recorrente, fruto do desconhecimento sobre a estrutura do mercado de transporte urbano. Além de ignorar aspectos relevantes, como segurança dos passageiros e a necessidade de coordenação e planejamento do setor, o estudo se limitou à análise do mercado de taxis, desconsiderando o impacto no transporte regulado de passageiros urbanos, de ônibus, transporte seletivo por micro-ônibus, escolar, trens e metrôs, entre outros. As empresas de “tecnologia de aplicativos” preferem pedir desculpas do que licença, parte da estratégia de entrada nos mercados regulados.

A economia compartilhada (sharing economy) é um conceito mais abrangente do que é considerado nas discussões sobre transportes urbanos. Embora existam muitas plataformas que reflitam o verdadeiro espírito do compartilhamento, qual seja compartilhamento de ativos subutilizados, monetizados ou não, de forma que aumente a eficiência, a sustentabilidade e o uso comunitário, outras tantas se aproveitam do momentum do termo. April Rhine2 mostra que os aplicativos de transporte são exemplos de confusão intencional da terminologia e apresenta diferenças entre os vários modelos da “nova economia”. Economia colaborativa refere-se às formas colaborativas de consumo, produção, financiamento e aprendizado; economia sob demanda relaciona-se à imediata provisão de bens e serviços sob demanda, que inclui o ridesourcing; economia “gig” está focada na participação da força de trabalho e geração de renda através de trabalhos temporários em projetos específicos; economia freelance trata da participação da força de trabalho e geração de renda por trabalhadores, independentes ou por conta própria; economia “peer” refere-se a redes “pessoa para pessoa” na criação de produtos, entrega de serviços e financiamentos, entre outros. Economia “access” foca no acesso sobre a propriedade; economia “crowd” refere-se à busca e construção de novas modelagens econômicas com base na agregação de pessoas, que por meio da interação, buscam novos valores de troca, unindo a geração de conhecimento e entrega de valor para a sociedade com a possibilidade real de ganho e de uma nova economia; economia digital tem foco em tecnologias digitais; economia de plataforma focada em ações movidas por plataformas centradas em tecnologia.

O “ridesourcing” ganhou destaque por seu crescimento nas cidades, em escala mundial, e por gerar polêmicas quanto ao seu efeito ainda desconhecido em diferentes âmbitos, tais como migração modal, congestionamento, posse de veículos, segurança e questões trabalhistas. Desregulamentação dos táxis não é razoável nem encontra precedente em cidades relevantes do mundo.
O artigo do economista do Cade é de limitada abrangência. Equivoca-se ao focar apenas no mercado de táxis, uma vez que as externalidades da entrada dos aplicativos não se limitam a este modo. Ignorar o  impacto do “ridesourcing” sobre o transporte público potencializa a tendência de queda de passageiros das últimas décadas. Pesquisa recente realizada em Porto Alegre mostra que os usuários de “ridesourcing” assemelham-se ao perfil encontrado em estudos americanos: majoritariamente jovens com até 30 anos, classe média, economicamente ativos e com alto nível de educação. A maioria possui habilitação e acesso a automóvel, mas também algum cartão de transporte integrado e isenção no transporte público. 79% também usa automóvel, 75% transporte coletivo e 66% transporte ativo.

O uso de “ridesourcing” é esporádico, com frequência mensal entre 1 a 8 viagens e o objetivo de voltar para casa ou lazer. O pico de demanda ocorre uma hora mais tarde que o do tráfego geral. Os principais motivos em cidades americanas são conveniência e rapidez, e em Porto Alegre, preço, segurança, rapidez e conveniência. O “ridesourcing” se sobrepõe com todos os demais modos e complementa de forma módica o sistema de transporte urbano (apenas 3% dos usuários não viajariam por nenhum outro modo).
Os modos de transporte a partir dos quais os usuários migram para o “ridesourcing” tem como origem o táxi (38%), transporte público (28%) e automóvel privado (25%). A concorrência com o transporte coletivo fica evidente pelo fato que 43,8% das viagens de “ridesourcing” poderiam ser feitas pelo mesmo, o que também ocorre no caso americano4.

O impacto ambiental dessas trocas modais não é sustentável: 37% das viagens (cujo modo alternativo são transporte público, transporte ativo ou viagens induzidas) aumenta os congestionamentos. As viagens de “ridesourcing” são relativamente curtas, o que reduz a eficiência de viagens (o motorista trafega mais quilômetros sem passageiro). Ao remeter para as autoridades locais, a Lei Federal nº 13.640/18 transferiu aos municípios a responsabilidade por regulamentar e fiscalizar um serviço cujas externalidades provocam desequilíbrio
econômico financeiro no transporte público regulado e consequente necessidade de aumento dos preços das tarifas desses serviços. Ao contrário do que propugna, o estudo do Cade acrescenta pouca luz para a discussão e para o embasamento de decisões a serem tomadas pelas autoridades municipais. A proposta de desregulamentação dos táxis não é razoável nem tampouco encontra precedente em cidades relevantes do mundo.

1. Resende, Guilherme Mendes (2018). A concorrência no mercado de aplicativos de táxi e do Uber.
Valor Econômico. 16-04-2018.
2. April Rinne (2017). What exactly is the sharing economy? World Economic Forum. December, 13th
2017. https://www.weforum.org/agenda/2017/12/when-is-sharing-not-really-sharing/
3. Daniela Lichtler Cassel (2018). Caracterização dos serviços de ridesourcing e a relação com o
transporte público: estudo de caso em Porto Alegre. Dissertação de mestrado. Programa de Pósgraduação
em Engenharia de Produção. UFRGS.
4. CLEWLOW, R. R.; MISHRA, G. S. Disruptive Transportation?: The Adoption, Utilization, and
Impacts of Ride-Hailing in the United States. Research Report UCD-ITS-RR-17-07. Institute of
Transportation Studies, University of California. Davis, 2017.

 

Luiz Afonso dos Santos Senna é PhD em transportes, professor titular da Escola de
Engenharia da UFRGS.

 

Fonte: Valor Econômico