Como ocorre todos os anos, há quase três décadas o setor de transporte público por ônibus urbano divulga o desempenho do modal em termos de eficiência, produtividade e outros indicadores que demonstram objetivamente o que precisa ser melhorado no ônibus em todo o país. No decorrer dessa série histórica, pelo menos nos últimos 20 anos, as constatações têm sido as mesmas: ausência de políticas públicas integradas, falta de investimentos em infraestrutura urbana para qualificação das vias, falta de planejamento e racionalização dos sistemas de transportes, e necessidade de fontes extratarifárias para financiar a prestação do serviço de forma equilibrada e a custo reduzido para os passageiros. Estes são os grandes empecilhos à evolução do serviço de ônibus no Brasil.
A situação é decorrente de um equívoco estrutural, que se traduz na estagnação dos investimentos e em políticas públicas que privilegiam há décadas o transporte individual em detrimento do coletivo. O caos urbano que vivenciamos hoje é a somatória desses erros históricos. Como consequência, em quase 40 anos, o transporte público coletivo sofreu drástica redução de representatividade na matriz de deslocamento nas áreas metropolitanas do Brasil. Caiu de 67% para 28,4% de 1977 a 2014. Significa dizer que o transporte individual vem ocupando mais espaço nas vias. Equilibrar essa matriz no atual cenário de crise econômico-financeira do Brasil torna-se tarefa ainda mais desafiadora.
Felizmente, as crises impulsionam grandes movimentos propositivos em reação aos desafios e foi o que moveu o setor na elaboração do documento Construindo hoje o amanhã – propostas para o transporte público e a mobilidade urbana sustentável no Brasil, elaborado pela Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP) em parceria com a Frente Nacional de Prefeitos (FNP), o Fórum de Secretários e Dirigentes Públicos de Mobilidade Urbana e a Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU).
Pela primeira vez, as principais propostas de consenso para recuperar o setor foram reunidas, resultando em cinco programas que podem efetivamente construir um transporte público de boa qualidade, com transparência e preços acessíveis aos passageiros. Trata-se principalmente de uma demanda setorial ao governo federal quanto a investimentos em infraestrutura e fontes de recursos para custear a operação dos serviços. Para se ter uma ideia da situação, no período 2018-2019 entraram em operação apenas três projetos de priorização do transporte público em todo o Brasil. Conforme a série histórica do setor, apenas um sistema BRT e uma faixa exclusiva em Niterói (RJ), e outra faixa exclusiva em Curitiba (PR).
As propostas setoriais são uma contribuição aos gestores públicos das três esferas de governo. Se aplicadas, poderão devolver a velocidade operacional e a produtividade ao transporte público, permitindo que o ônibus volte a ser atraente ao passageiro. Um compromisso inadiável afinal, esse serviço público é direito social, garantido pelo artigo 6º da Constituição Federal, assim como saúde e educação.
A despeito da paralisação de projetos de mobilidade urbana e da ausência de investimentos públicos no transporte coletivo urbano, o setor resiste e tem dedicado todos os esforços para manter a oferta do serviço com a menor tarifa possível. E agora vai além, com um amplo programa de inovação em mobilidade coletiva que busca soluções inéditas para se reinventar e atender às justas expectativas de passageiros e não usuários do transporte público.
O transporte público que o passageiro deseja no futuro passa pela conquista da mobilidade realmente sustentável e inovadora, que só poderá existir se for baseada numa rede organizada, integrada e robusta, que cumpra plenamente seu papel social de ofertar um serviço universal, contínuo e com modicidade tarifária. E terá que ser cada vez mais inclusivo e capaz de atender a todos os perfis de usuários, em especial das classes sociais de menor poder aquisitivo e segmentos mais vulneráveis da população, incluindo idosos, estudantes, pessoas com deficiência e outros beneficiários de gratuidades. Para que o ônibus consiga alcançar a excelência é imprescindível que a sociedade e os poderes públicos nas três esferas de governo tenham consciência e entendam que hoje o passageiro é quem paga sozinho a conta da ausência do Estado, da baixa qualidade do serviço e da falta de uma fonte permanente de financiamento que alivie o peso das tarifas. Sem ele, não haverá futuro para o transporte coletivo urbano. E sem o transporte coletivo, não haverá futuro para nossas cidades.
Otávio Cunha, presidente executivo da NTU
Fonte: Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos – NTU