Com experiência privada e pública no setor de transporte urbano e mobilidade, o Secretário de Transporte e Trânsito da Prefeitura de Juiz de Fora e presidente do Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Públicos de Mobilidade Urbana, Rodrigo Mata Tortoriello, alerta também para a regulamentação dos transportes por aplicativo, que podem minar ainda mais as fontes de recursos do setor
Rodrigo Mata Tortoriello chegou ao posto de secretário de Transporte e Trânsito da Prefeitura de Juiz de Fora depois de uma carreira desenvolvida como consultor na área de engenharia de transportes. Acostumou-se a encontrar soluções para os problemas vividos nas cidades. Mas foi na Secretaria, em Juiz de Fora, que entendeu todo o processo (e suas dificuldades) para transformar boas ideias em política pública. “Entendi rapidamente que não adianta ter uma ideia sensacional e querer dar uma canetada para implementá-la (…). É preciso construir um ambiente favorável com prefeitos, vereadores, deputados, senadores… para que uma boa ideia não seja sepultada por ter sido mal gerida”. Em conversa com a Revista NTUrbano, Tortoriello contou um pouco de sua experiência como secretário à frente do Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Públicos de Mobilidade Urbana. Confira!
Como foi a experiência de presidir o Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Públicos de Mobilidade Urbana?
Estou desde maio deste ano como presidente do Fórum. Nosso trabalho envolve não apenas a parte de transporte, mas de trânsito também, então discutimos resoluções do Denatran, propostas para o Denatran e também a mobilidade urbana. Pensamos no desenvolvimento de políticas públicas de transporte, com priorização para o transporte coletivo no sistema viário e propostas de investimento em infraestrutura como o BRT, entre outros temas. Trabalhamos ainda com conscientização e atuamos fortemente na parte política, junto a deputados e senadores, para destacar a importância da mobilidade urbana para as políticas públicas. Tivemos um despertar para essa temática em 2013, com o reajuste da tarifa de São Paulo mais especificamente, e de lá para cá tivemos muitas ações que deram certo. E teve outro tanto que não foi adiante. Nosso trabalho é muito no sentido de fortalecer politicamente a questão da mobilidade urbana.
Ao longo desse período, qual foi o maior desafio? Enfrentar a pauta das eleições ou temáticas antigas que vocês já estavam tocando?
As pautas não mudam muito… durante o período eleitoral a gente teve um pouco de distanciamento, porque a disputa foi muito focada em torno de segurança pública e não tivemos espaço para esse debate sobre mobilidade. Mas já estamos conseguindo retomar agora. O tema da mobilidade é muito importante e os números ajudam a ilustrar. Segundo estudos, o prejuízo estimado com acidentes de trânsito no Brasil é da ordem de R$ 146 bilhões. Se pensarmos que o déficit do Governo Federal para o ano de 2019 (que está no orçamento) é de R$ 139 bilhões, percebemos que, se a gente não tiver nenhum acidente de trânsito, poderíamos quitar o déficit público. É em relação a isso que precisamos sensibilizar o nosso Legislativo, desenvolvermos ações para mostrar o quanto a sociedade como um todo perde em termos de recursos financeiros públicos por causa de acidentes de trânsito. Do outro lado, nós temos as perdas do transporte público, mostradas por metodologias consagradas pelo Banco Mundial e outras entidades: as perdas de horas trabalhadas que gastamos no trânsito, por causa da falta de prioridade de transporte coletivo; as perdas com a poluição gerada pelo diesel dos ônibus que estão parados nos congestionamentos; perdas nos próprios acidentes em que os ônibus acabam se envolvendo por falta de prioridade e exclusividade. Temos um custo de mobilidade urbana, pela própria falta de mobilidade, que é altíssimo. A gente não tem essa percepção, e se não fizermos um trabalho de divulgação dessas informações, não conseguiremos sensibilizar a sociedade.
E a questão do financiamento do transporte público?
Esse é outro debate relevante. Quanto é que uma gratuidade custa para todo mundo? Vamos implantar gratuidade para estudantes? Vamos implantar gratuidade para idosos? Acontece que um ônibus ou metrô ou trem não rodam sem energia elétrica, sem condutor… e precisamos de recursos financeiros para custear isso. Como a sociedade quer custear isso? É através da tarifa como é hoje? Ou não, queremos criar um grande imposto nacional onde tudo é gratuito? Isso também é um caminho, mas o que precisamos é entrar na discussão sobre como financiar o transporte público para que ele não dependa exclusivamente da receita tarifária. Esse vai ser o grande desafio que a gente vai travar nos próximos anos e isso inclui sensibilizar o Governo Federal na condução desse processo.
Sua visão pessoal e profissional foi impactada positiva ou negativamente por essa experiência que você está tendo na Secretaria e no Fórum Nacional?
É curioso, pois agora tenho a visão dos dois lados, público e privado. Antes de assumir a Secretaria eu trabalhava em consultoria na área de engenharia de transportes. Percebo que, enquanto técnicos, temos a solução técnica adequada para cada tipo de problema que enfrentamos. O que a gente, do lado de quem não está no poder público, às vezes não consegue enxergar e não leva em consideração é o fator político. Como fazer com que políticas públicas sejam implementadas através da discussão com a sociedade. Não adianta eu ter uma ideia sensacional e querer dar uma canetada para implementá-la em um determinado local. É preciso construir um ambiente favorável com prefeitos, vereadores, deputados, senadores… para que uma boa ideia não seja sepultada por ela ter sido mal gerida na sua implementação. O que mais mudou na minha percepção foi a forma de implementação do projeto: não basta ter boas ideias, você tem que ter uma boa ferramenta de implementação para que esse projeto possa avançar. Precisamos do ambiente político para isso acontecer.
Na sua visão, quais são os principais gargalos do transporte coletivo urbano e da mobilidade urbana no Brasil?
O principal gargalo que a gente teve ao longo desses anos, ainda que iniciativas fossem apontadas como solução para o transporte coletivo – seja ele por ônibus, sob trilhos, com os grandes projetos pelo PAC – é que continuamos exonerando a cadeia produtiva do transporte individual. Então, o benefício que o automóvel individual tinha, continua tendo e segue muito maior. Em comparação, existem mais linhas de financiamento (para o transporte individual) do que, por exemplo, para comprar um ônibus elétrico, que é um produto de tecnologia limpa, que transporta muita gente, ocupa menos espaço na via e é ecologicamente correto. Incentivamos o transporte individual por moto e automóvel em detrimento do transporte coletivo. As mudanças não aconteceram, ainda que tenha havido ações pontuais de investimentos nos meios públicos de transporte.
Acho que está na hora de a gente repensar esse modelo e pensar em uma forma de o automóvel privado financiar o transporte coletivo. Porque só assim vamos conseguir fazer com que as pessoas tenham um transporte de maior qualidade. Precisamos melhorar a qualidade do transporte, isso é fato. Mas a gente também precisa fazer o transporte público coletivo ser atrativo do ponto de vista financeiro para o cidadão. Hoje a tarifa é cara para quem paga e em muitos dos casos ela não cobre os custos operacionais que as empresas têm que alcançar, então como é que vamos sair desse ciclo perverso em que estamos?
No Fórum e na cidade de Juiz de Fora, que soluções estão sendo adotadas para enfrentar essas questões?
No município, ampliamos a quantidade de quilômetros de faixas exclusivas (de 9 km para 20 km) e trabalhamos, sobretudo, na informação ao cidadão, conferindo confiabilidade ao sistema. Temos um aplicativo que informa em tempo real a hora que o ônibus vai chegar no ponto de ônibus. Isso foi feito em parceria com uma empresa privada e pode ser replicado como solução de baixo custo para cidades de porte médio. Essa foi a primeira vez que o poder público e o setor privado trabalharam em conjunto para implantar esse tipo de produto. Isso o cidadão vê, é um aplicativo na mão dele. A parte da confiabilidade vem daí: o cidadão sabe que o transporte funciona e virá, mas o aplicativo também permitiu maior transparência, controle de partidas, passageiros transportados mês a mês, variação da tarifa. Como o serviço de transporte público envolve muita desconfiança, dando essa transparência vamos minimizando as críticas de que o transporte é “caixa preta”. Colocando na internet, damos transparência total. Não tem nada que tenha que ficar escondido na prefeitura, a gente não faz nada errado.
Parte das soluções que vocês encontraram aí no município de Juiz de Fora são escaláveis para outros municípios de outros portes, menores ou maiores?
Sim! A implementação de faixas exclusivas é fácil de ser reproduzida e não tem custo alto. O custo para o sistema de monitoramento também não é absurdo. São medidas pequenas, mas que podem trazer a comodidade para o cidadão, trazem transparência e diminuem os questionamentos, mostram o que tem de bom e permitem identificar e melhorar o que tem de ruim. São ferramentas altamente escaláveis e de fácil implementação, não estou falando em nada absurdamente caro. São sistemas complexos no desenvolvimento, mas a aplicabilidade é simples e rápida. A gente está falando aí em três ou quatro meses (numa cidade de porte médio) para colocar em prática o rastreamento e a informação em tempo real.
Como vocês imaginam que deveriam ser as políticas de financiamento e custeio do transporte público?
Atualmente, trabalhamos para que as cidades tenham que observar requisitos de qualidade, como transparência e informação ao cidadão. Esses e outros itens teriam de ser cumpridos para que as cidades tenham acesso ao Fundo de Financiamento da Tarifa, que pode ser criado por diversas fontes – por exemplo, a CIDE que incide sobre o valor do combustível. Se tiver um percentual desse valor destinado para esse fundo, os municípios que cumprirem regras de qualidade poderiam solicitar recursos desse montante para diminuir suas tarifas, por exemplo. Também podemos determinar que impostos sobre a produção de automóveis devem ajudar a financiar o transporte público. De que forma o transporte individual pode colaborar? Há diversas formas: pedágio urbano, pedágio-congestionamento (como acontece na Europa). Os municípios também podem criar suas próprias fontes, por exemplo, taxando o estacionamento privado. Será que os estacionamentos não podem ter uma taxa municipal para que aquilo seja revertido na redução da tarifa? A própria restrição ao estacionamento (como acontece também na Europa) pode ser uma medida que ajude a regular preços. Outro ponto muito relevante diz respeito ao transporte por aplicativos: eles usam a infraestrutura urbana diariamente (construída com dinheiro público) e não transferem recursos de volta à população. Normalmente são empresas estrangeiras que levam o dinheiro para outro país. A gente oferece uma estrutura pesada e cara para eles ganharem dinheiro. Precisamos discutir de que forma eles vão contribuir para a redução da tarifa.
“Se não investirmos em meios menos poluentes e no transporte coletivo, e se não mudarmos nossa perspectiva de investimento mais no individual do que no coletivo, o cenário pela frente será muito complexo”
Qual a importância de regulamentar esses aplicativos?
O transporte por aplicativos trouxe um enorme benefício, criou uma concorrência que não existia ao serviço do táxi e uma das consequências é a melhoria da qualidade do serviço do táxi. Mas qual é a situação negativa dessa tecnologia? Como não existe um número pré-determinado, não existe um controle de entrada: o excesso de oferta de aplicativos pode levar à falência do serviço de táxi, por exemplo. E, no limite dessa história, se todos os táxis acabarem, o aplicativo pode colocar o preço que quiser no mercado. Chegamos então à segunda parte, que é a migração da demanda do transporte coletivo para o individual por aplicativo: reduzimos o número de passageiros do serviço de transporte e, como ele depende exclusivamente da tarifa, ela precisa aumentar porque tem menos gente para pagar pelo serviço. Por outro lado, se não há priorização do transporte coletivo nas cidades, o excesso de veículos fazendo transporte por aplicativos gera mais trânsito e vai exigir um aumento da frota de ônibus para fazer o mesmo serviço que era feito no passado, quando não existia aquela quantidade de veículos na rua. Então, esse efeito perverso de uma novidade tecnológica (que é importante e a gente tem que absorver e tratar) não está sendo medido. É esse o cuidado que o gestor público tem que ter, mostrar à sociedade que a tecnologia é boa, mas que a médio e longo prazo ela pode ser muito danosa.
E essa regulamentação do transporte por aplicativo está avançando?
Falando nacionalmente, tivemos iniciativas isoladas. São Paulo acho que foi a primeira cidade de grande porte a regulamentar e os demais municípios estão correndo atrás, tentando se adequar. No caso de Juiz de Fora, estamos com uma regulamentação na Câmara local para ser votada, mas ela não entrou na pauta dos vereadores. Acredito que teremos, inicialmente, várias regulamentações bastante distintas pelo país e a gente vai levar uns cinco a seis anos, talvez mais, para aprender com os erros e acertos dos outros municípios e desenvolver uma legislação adaptada que tenha nortes bem definidos. Uma coisa que nós, do Fórum, insistimos é que o transporte por aplicativo deve ser visto como provável financiador do transporte coletivo.
O que se pode indicar como expectativa nesse debate nacional sobre as políticas para os transportes públicos do Brasil nos próximos anos?
A expectativa dos próximos anos depende fundamentalmente de como a gente vai conseguir sensibilizar o Governo Federal na expectativa de criar uma Política Nacional de Mobilidade Urbana que entenda o transporte coletivo como prioridade. Porque, se não conseguirmos essa sensibilidade do Governo Federal, vamos continuar fazendo errado como temos feito nos últimos anos, priorizando o transporte individual em detrimento do coletivo. Continuando nesse sentido teremos um cenário muito ruim pela frente, de transporte cada vez mais caro, com a qualidade cada vez menor, e o transporte individual sendo o protagonista em qualquer deslocamento que a gente faz. Se não investirmos em meios menos poluentes e no transporte coletivo, e se não mudarmos nossa perspectiva de investimento mais no individual do que no coletivo, o cenário pela frente será muito complexo, teremos apenas externalidades negativas como aumento de tempos de viagem, aumento dos custos e a inviabilidade do transporte coletivo como um todo. O cenário é bastante preocupante, precisamos de medidas efetivas e que não podem levar muito tempo para serem implementadas.
Dentro desse cenário, qual o papel do Fórum Nacional de Secretários junto aos governos regionais e ao Governo Federal?
O Fórum funciona junto à Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). Só que nós, secretários, temos um chefe que é o prefeito. Por isso, a participação da Frente Nacional de Prefeitos (FNP) é essencial para que possamos debater em conjunto, ter força e unicidade de discurso. Ter todos os prefeitos falando a mesma língua, levando a mesma proposta de política pública, confere força às propostas. A parceria com entidades representativas do setor é fundamental para que a gente possa construir uma proposta de política pública nacional e que ela tenha realmente frutos. Um desafio para 2019 é conseguir sensibilizar diversos deputados e senadores para que sejam nossos defensores no Congresso Nacional. Estamos mobilizando nossos prefeitos e os deputados e senadores eleitos de cada região para que tenhamos interlocutores que possam nos defender no Congresso quando, por exemplo, vier uma medida que destine recursos de multas para uma fonte que não deva ser utilizada. Tivemos uma situação muito importante que exemplifica isso. Havia um projeto que destinava 15% da receita de multas à implementação de infraestrutura cicloviária. A ideia é sensacional, porém não levou em consideração a realidade de cada município: Minas Gerais é um estado que tem muitas cidades montanhosas, tem a parte histórica (como é que o município de Ouro Preto vai criar um fundo de 15% da arrecadação de multas e vai implantar ciclovia naquelas ruas que a UNESCO tombou?). Essas medidas não podem ser adotadas de forma generalizada e sem critérios. Somos muito favoráveis à bicicleta, mas não pode ser de qualquer forma, tem de ser bem discutida e bem tratada com os municípios.
PERFIL
Rodrigo Mata Tortoriello é especializado em Gestão Pública pelo Centro de Liderança Pública (CLP) da Harvard Kennedy School e em Transportes pelo Programa de Engenharia de Transportes pela Coppe, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É graduado em Administração pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e pós-graduado em Administração e Estratégia de Marketing (Faculdade Machado Sobrinho). Atualmente, preside o Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Públicos de Mobilidade Urbana e é Secretário de Transporte e Trânsito da Prefeitura de Juiz de Fora desde janeiro de 2013.
Entrevista publicada na Revista NTUrbano Ed. 36, Nov./Dez. 2018.
Fonte: Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos – NTU