É senso comum entre autoridades e gestores públicos, operadores e especialistas em mobilidade urbana que o atual modelo utilizado para cobertura dos custos das redes de transporte por ônibus na grande maioria das cidades brasileiras encontra-se totalmente ultrapassado e esgotada.

No Brasil, com raras exceções, prevalece a antiga regra pela qual a receita da tarifa publica cobrada dos usuários pagantes deve cobrir a totalidade dos custos de prestação dos serviços e, além disso, cobrir também os custos das gratuidades e benefícios tarifários criados por um emaranhado de leis originadas nas três instancias de governo.

Essa arcaica pratica brasileira esta na contramão da tendência mundial, na qual o transporte público coletivo e reconhecido como insumo essencial das atividades econômicas e do desenvolvimento social e, por isso, seus custos devem ser suportados por toda a sociedade, que dele se beneficia, e não apenas pelos usuários diretos.

A injustiça com os brasileiros usuários do transporte publico coletivo não para por ai. Fruto de uma equivocada politica do governo federal que incentivou a população a adquirir e utilizar automóveis e motos, a frota nacional aumentou vertiginosamente nas ultimas décadas, sobrecarregando uma infraestrutura urbana sem capacidade e provocando o crescimento incontrolável dos congestionamentos de transito nas cidades do Pais.

Na falta de uma politica de priorização do transporte coletivo no sistema viário, essa ocupação irracional das vias urbanas ocasionou a perda de desempenho e da qualidade dos serviços de transporte por ônibus, originada na queda da velocidade de circulação, que representa aumento dos custos e do tempo de viagem.

Na realidade, o usuário do transporte coletivo passou a pagar mais caro por um serviço de pior qualidade, ou, ainda, passou a pagar, injustamente, um sobrepreço pelo uso indiscriminado e irracional do transporte individual realizado em automóveis e motos que não e de sua responsabilidade.

Não e, portanto, sem razão que grande parte da população brasileira esta a exigir um transporte público de boa qualidade, com transparência e preços acessíveis aos passageiros.

Para atender a esse anseio social, e fundamental mudar o atual modelo de financiamento do custeio dos serviços. A regra atual, que atrela os custos do transporte ao preço pago pelos usuários, e o grande limitador da qualidade dos serviços ofertados a sociedade. Vale lembrar que esse desatrelamento já e praticado em todos os sistemas metro ferroviários em operação no Pais, existindo alguns casos em que a receita tarifaria cobre apenas 10% dos custos operacionais.

Qualquer transporte de boa qualidade custa caro e não consegue ser suportado somente pela tarifa. Essa e a realidade observada em vários países mundo afora, onde a receita tarifaria e complementada com outras fontes de receita não tarifaria para cobrir os custos totais dos serviços prestados.

Do ponto de vista legal, esse mecanismo já esta previsto na Lei no 12.587/2012, que instituiu as diretrizes da Politica Nacional de Mobilidade Urbana, na qual, no artigo 9o, se diferencia tarifa publica (preço cobrado dos usuários) de tarifa de remuneração da prestação do serviço (valor pago ao operador concessionário ou permissionário).

Um novo modelo de financiamento do custeio do transporte publico coletivo deve ser construído com base em alguns princípios que possam garantir a sua sustentabilidade, perenidade, efetividade e aprovação pela sociedade. Dentre eles, destacam-se:

 

PARTICIPAÇÃO DOS TRÊS NÍVEIS DE GOVERNO

Em face do pacto federativo em vigor e das competências de cada ente federativo na implementação de politicas públicas e outras medidas que interferem diretamente no desempenho e nos custos dos sistemas de transporte público, e fundamental dividir entre eles as responsabilidades pelo provimento dos recursos extra tarifários.

Essa co-participação e reforçada considerando as inúmeras legislações que estabelecem gratuidades e benefícios tarifários no transporte publico, que sobrecarregam os preços das passagens e são originadas nas três esferas de governo.

 

TARIFA PÚBLICA E TARIFA DE REMUNERAÇÃO DA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO

E fundamental a total desvinculação entre as duas tarifas, cabendo ao poder publico concedente a sua gestão. A tarifa publica e uma decisão politica da autoridade publica responsável pelos serviços, a quem cabe também estabelecer seus reajustes periódicos. A tarifa de remuneração da prestação do serviço origina-se no processo licitatório e também cabe a autoridade publica responsável pelos serviços os seus reajustes e revisões de acordo com as regras estabelecidas em contrato.

 

CONTRIBUIÇÃO DO TRANSPORTE INDIVIDUAL MOTORIZADO

E pratica mundial taxar o uso do transporte individual nas áreas urbanas e destinar esses recursos para melhorar a qualidade do transporte coletivo, em busca de avançar para uma mobilidade urbana mais sustentável.

Essa taxação geralmente e realizada por meio de tributos sobre os combustíveis, pedágios urbanos, cobrança sobre estacionamentos e sobretaxas nos licenciamentos dos veículos.

Além de gerar varias externalidades negativas como aumento da poluição, dos acidentes de transito e dos congestionamentos, o transporte individual ocupa muito mais espaço viário urbano por passageiro transportado, portanto e justo que pague por isso. Pesquisas realizadas em algumas capitais brasileiras mostram que, nas vias estruturais, os automóveis chegam a ocupar 70% do espaço viário, transportando apenas 20% dos passageiros.

 

DESONERAÇÃO TRIBUTÁRIA

Definido como serviço público essencial (Art. 30 CF) e como direito social dos brasileiros (Art. 6o CF), o transporte coletivo urbano ainda esta sujeito a uma elevada carga tributaria, que varia de 36% a 41% da receita auferida pelas empresas operadoras.

Pelas regras atuais, em que a tarifa publica cobre a totalidade dos custos, e claro que o ônus dessa pesada carga tributaria e, em grande parte, transferida para os usuários do serviço.

Ao considerar a participação dos orçamentos públicos no custeio dos serviços, fica sem sentido o governo destinar recursos para cobrir custos onerados por tributos instituídos por ele próprio.

Nesse sentido, e prioritário considerar no novo modelo a desoneração tributaria do serviço publico de transporte coletivo, a exemplo da politica tributaria adotada para outros direitos sociais como saúde e educação.

 

FONTES DE CUSTEIO PARA GRATUIDADES E BENEFÍCIOS TARIFÁRIOS

A atual pratica de concessão de gratuidades e benefícios tarifários a grupos sociais no transporte público, sem definir a fonte dos recursos para cobertura dos respectivos custos, cria serias distorções para o setor.

Na realidade, o setor econômico responsável pelo serviço público essencial de transporte coletivo esta externalizando recursos para execução de politicas publicas de outras áreas que nada tem a ver com o transporte, como as áreas de educação e assistência social aos idosos.

Além disso, essa pratica gera uma enorme injustiça social, na medida em que joga todos os custos decorrentes nas costas da parcela mais carente da população que normalmente usa transporte publico.

 

Definir fontes extra tarifárias para cobertura desses custos e parte fundamental do novo modelo.

 

PRODUTIVIDADE, QUALIDADE E TRANSPARÊNCIA

São três os requisitos fundamentais para os serviços de transporte publico coletivo urbano dentro do novo modelo de financiamento, pois eles vão garantir as condições econômicas, sociais e politicas para sua implementação:

 

  • Produtividade, evitando-se a aplicação de recursos públicos em serviços irracionais e de baixo desempenho. Nesse sentido, e fundamental que a implantação do presente modelo venha acompanhada de um programa de qualificação da infraestrutura do transporte publico e da implantação de redes de transporte publico integradas, otimizadas e econômicas.
  • Qualidade, com a adoção de padrões mínimos de qualidade dos serviços que atendam as necessidades e aos anseios da população usuária. Aqui também se insere o programa de qualificação da infraestrutura.
  • Transparência, em termos de oferta dos serviços, receitas auferidas e custos envolvidos, de modo que se assegure o uso adequado dos recursos públicos aplicados e conquiste a confiança de toda a sociedade.

 

SEGURANÇA JURÍDICA

A implantação de um modelo de financiamento do transporte publico urbano que passara a contar com fontes de receitas extra tarifárias para atingir o equilíbrio econômico-financeiro das redes de serviço, inclusive com fontes originadas nos orçamentos públicos dos três níveis de governo, deve conter mecanismos de garantia que forneçam segurança jurídica as empresas prestadoras dos serviços, seja no que tange ao cumprimento das diversas obrigações contratuais, seja no que se refere especificamente ao adimplemento nos repasses dos recursos extra tarifários nos prazos pactuados.

Dessa forma, os contratos, a serem celebrados nesse novo cenário, deverão contemplar esses mecanismos de segurança, a exemplo dos fundos garantidores existentes nos contratos de PPPs. Ao longo deste artigo, procurou-se trazer as justificativas politicas e sociais que comprovam a necessidade de um novo modelo de financiamento do custeio do transporte coletivo por ônibus, que atende hoje a cerca de 86% das viagens urbanas em transporte publico no Brasil.

Buscou-se também lançar as bases do novo modelo que naturalmente precisam ser aprofundadas e avaliadas em seus aspectos técnicos e políticos.

Fica a expectativa de que essa semente possa contribuir para a recuperação do transporte publico urbano brasileiro, alinhado com os anseios de grande parte da sociedade.

*Artigo do Diretor Administrativo e Institucional  da  Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos, Marcos Bicalho dos Santos.

Fonte: Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos – NTU